quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Memórias campeiras




Mario Arregui é desses escritores uruguaios que conseguem mapear os dramas humanos universais no rigor moral, nos modos embrutecidos e na memória de viventes campeiros. Um irmão mais novo de Juan José Morosoli, e como todo caçula rebelde, de penas mais enfeitadas também. Noite de São João, o primeiro conto do volume traduzido por Sérgio Faraco e publicado pela editora L&PM sob o título Cavalos do Amanhecer, é uma amostra exemplar dessa prática.

Nele Francisco Reyes regressa ao povoado depois de muito tempo nas tropeadas, depois de muito tempo na lida abundante em interjeições e árida em diálogos que a companhia do gado promove. Regressa justo na noite de São João, noite de luzes mais vivas, de fogueiras lambendo o céu. Junto de sua volta, nalgum canto daquela imensidão de lampiões iluminando a vila, há uma dívida afetiva com familiares, há o desejo de reencontrar as mulheres da vida, sobretudo a amiga Carmen.

Reyes escolhe como prioridade a segunda opção. E nos leva pelas ruelas arenosas da localidade que aos poucos volta a reconhecer como sua. No caminho, contudo, uma parada para apreciar a respeitável altura de uma fogueira – chama tão acesa e densa quanto as perturbações afetivas causadas pelo regresso. Ele freqüenta as chinas. Ele se despede delas. A noite avança. A perturbação permanece, sobrevive às artimanhas dos lençois.

Reyes recorre, então, ao álcool, companheiro fiel do homem solitário – urbano ou rural. E aquela euforia que normalmente desarma qualquer ameaça de reflexão existencial, aquela debilidade muscular e mental que reduz a preocupação mais alarmante a um problema banal, aquela euforia não é mais concedida pelo trago.

Restaria o fumo, talvez o exorcismo da realidade na bebedeira sem concessões, por fim a contemplação da mesma fogueira cada vez mais reduzida pela diminuição da temperatura, pela displicência dos garotos em repor a lenha – como quem assiste o ponteiro avançar no relógio por horas na esperança de que um remorso recente cicatrize logo e se transforme numa vaga lembrança ruim.

O destino, porém, tem planos mais interessantes para Reyes. Nas imediações de outro bordel, ele se depara com um rosto belo, jovem e desconhecido. A esperança de aplacar a amargura persistente renasce naquele corpo de mulher. Eles encaminham-se para um quarto modesto. As apresentações verbalizadas dividem terreno com a emergente intimidade tátil, num ensaio de cumplicidade afastado da irracionalidade do sexo. E já madrugada adentro, já depois dos primeiros galos cantarem, já depois do sexo e do trago abandonarem as certezas de Reyes, nosso herói se reconcilia parcialmente com a vida no afeto financiado nos braços de uma prostituta novata.

O resto é despedida encharcada de uma gratidão contida à jovem, uma promessa mentirosa de reencontro, a melancolia insondável que os desenlaces de relações sustentadas pelo dinheiro sugerem. Mas é, sobretudo, a garantia de que o dia nascera, os galos cantaram em coro robusto, a fogueiro jazera na fragilidade das cinzas, Reyes vencera a noite de São João e suas armadilhas sentimentais. Era hora de despir o poncho humano. Era hora de voltar a ser tropeiro.


Uma vez por mês, a Memória encontra eco na Arte aqui no Blog. Uma vez por mês, o projeto Nossa Comunidade tem História dialoga com alguma manifestação artística que tenha na Memória um de seus temas centrais.

Um comentário:

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