sexta-feira, 29 de abril de 2011

Os 104 anos de Vó Vita


O bairro São Jorge, uma das localidades contempladas com o Projeto Nossa Comunidade tem História, comemorou no último dia 15 de abril o aniversário de 104 anos de Vitalina Fortes, a Vó Vita. Familiares, amigos e oficineiros do projeto festejaram a data junto da senhora centenária. Na ocasião, foi realizada uma sessão extraordinária das Rodas de Memória, especialmente dedicada à anfitriã.

Oriunda de Barão do Triunfo, Vó Vita fez questão de remontar a própria história: relembrou os tempos de parteira – habilidade que permitiu a realização dos nascimentos de seus 15 filhos –, a vinda para Guaíba, época em que a cidade mantinha uma atmosfera mais rural do que urbana, os primeiros anos no bairro São Jorge e revelou o segredo para a longevidade. “Adoro uma carne assada, churrasco, então, nem se fala, como todo final de semana”, afirmou contente.

Além da São Jorge, as Rodas de História seguem ocorrendo nos bairros Santa Rita, Ermo e Bom Fim.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Ao compasso da culpa*



Michel Laub é um investigador da memória. Ao contrário da maioria que o faz, porém, não utiliza o texto biográfico como instrumento desse processo. É no romance, terreno literário cada vez mais difícil de delimitar, visto a proximidade conceitual que adquiriu do conto e da novela, é no romance, texto de maior fôlego, portanto que reivindica engenharia mais elaborada, é no romance que Michel Laub esquadrinha a memória. Música Anterior, primeira obra do autor paulista, é um exemplo disso.

Michel Laub usa a memória de um juiz, figura atormentada por arrependimentos e frustrações na vida pessoal e no trabalho, jurista que rumina a culpa de condenar por estupro Luciano, marido estéril que se distancia da mulher com a mesma certeza da inutilidade de seus espermatozóides, familiar incapaz de perdoar o recrudescimento do pai com a morte da mãe e as coincidências que envolvem o irmão caçula e essa tragédia.

E numa prosa anárquica, ainda que numa anarquia muito bem engendrada, numa prosa hermética no formato e minimalista na linguagem, numa prosa que remete ao labirinto borrado que a memória retrataria caso se tirasse uma foto dela, nessa prosa Laub apresenta cada um dos acontecimentos que transformam o juiz em profissional, marido, filho e irmão frustrados. E descobrindo as outras vidas atreladas a esses fatos, a de Luciano, condenado por estupro, a esposa, mulher impedida de exercer a maternidade – ao menos, biológica –, o irmão, culpado pela morte da mãe, o pai, arremedo da pessoa que era quando a família ainda reivindicava quatro pratos, quatro copos, quatro garfos, quatro facas à mesa, o leitor descobre também a incapacidade de alterar cada um desses processos.

Michel Laub é um investigador da memória, mira na memória pessoal para alcançar o todo, o universal. E, pelo menos em Música Anterior, consegue. O juiz tenta perdoar e ser perdoado por cada um dos personagens que cercam sua vida, como se a solução destes imbróglios significasse um bilhete autenticado pela vida para seguir em frente, uma permissão a perseguir a felicidade. O contrário, porém, o não conseguir, a desculpa inalcançável, a conciliação impossível, gera o estático, imobiliza, proíbe o avanço. Na anarquia organizada de sua prosa, Laub investiga as culpas e frustrações que carregamos por toda a vida; e, sobretudo, os mecanismos afetivos que desenvolvemos para remediá-las.





*Duas vezes por mês, a Memória encontra eco na Arte aqui no Blog. Duas vezes por mês, o projeto Nossa Comunidade tem História dialoga com alguma manifestação artística que tenha na Memória um de seus temas centrais.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Sangue Latino, memória universal*

Eduardo Galeano é um dos artífices principais do resgate histórico e moral que a América Latina promoveu nos últimos 50 anos. Dentro do campo jornalístico, talvez seja sua luz maior. As veias abertas da América Latina, a obra fundamental. Não é de se estranhar, portanto, que seu principal tradutor no Brasil, o jornalista Eric Nepomuceno, tenha alcançado a façanha de expandir o inventário histórico, político e literário latinoamericano a uma esfera tão submetida a dogmas nascidos no hemisfério norte: a televisão. Sangue Latino, série de entrevistas com escritores, cineastas, atores – argentinos, uruguaios, brasileiros, chilenos –, produção do Canal Brasil, já pertence ao corpo das principais autobiografias audiovisuais deste continente.
E Nepomuceno reuniu um time abalizado para acompanhá-lo nas conversas. Submetidos, entrevistador e entrevistado, sempre a uma atmosfera que remete a ambientes portenhos – inclusive nos episódios protagonizados por brasileiros –, reforçados ainda pela trilha instrumental comandada pelo acordeom e a ausência de cores, a série incorpora com autoridade a voz, a música e a alma latina.
A memória de cada convidado é desnudada lentamente diante do telespectador, processo facilitado pela habilidade de Nepomuceno em ministrar as perguntas, ele transfigurado no padre mais confiável de um confessionário pagão. E pelos olhos dele, pelos nossos olhos, passa António Skármeta, escritor chileno - autor de O Carteiro e o Poeta, que compara o boom da literatura latino americana nos anos 60, momento de fundação de um imaginário latino para o restante do mundo, com o atual momento político vivido pelo continente, quando a soberania nasce de diferentes linhagens da esquerda; passa Paulo José, como já citado; passam Ruy Guerra, Chico Buarque, Marcelo Piñeyro, Mempo Giardinelli, Ferreira Gullar, León Ferrari , além de tantos outros.
E há, claro, Eduardo Galeano. E com ele, todo o corpo desgastado por mais de sete décadas e vida e mais da metade dela em luta conflagrada contra o imperialismo, contra a memória latinoamericana escrita por penas do norte, contra a própria parcela reacionária nascida em terras latinas, colonizada, e isso, caro amigo, deve cansar. Mas ainda com os mesmo olhos azuis inflamados, o discurso reto, direto, a voz combativa porém terna renovada a cada livro, a mesma voz que redimiu a todos nós expondo as veias abertas deste continente.
Por fim, o convidado é sutilmente provocado por Nepomuceno a lançar o próprio olhar sobre o jovem que foi. Como se o continente se transformasse num ancião disposto a remontar a própria memória, e sentasse diante de um espelho rejuvenescedor para observar, desde seus olhos vincados ladeados por têmporas desbotadas por cinco séculos, as angústias, os alentos, as perdas, os erros, o caminho que escolhera à época. Sem arrependimentos ou autocomiseração. Mas com o comprometimento de reconhecer a própria história, reconhecer-se, e confrontar toda a gravidade que isso acarreta. Reconhecer-se como se é. Tão somente isso.

Acesse a página do programa, no site do Canal Brasil, clicando aqui.


*Uma vez por semana, a Memória encontra eco na Arte aqui no Blog. Uma vez por semana, o projeto Nossa Comunidade tem História dialoga com alguma manifestação artística que tenha na Memória um de seus temas centrais.